Era abril de 1996 quando nós lançamos a última edição do midsummer madness em papel. (leia escutando essa playlist)
Sintomático porque fora no ano anterior que a internet deixou de ser exclusiva das universidades e empresas privadas para ser comercializada no Brasil. Em 1996 surgiram os primeiros portais: ZAZ e UOL. Não me lembro se eu já tinha email em 1996, provavelmente sim. No Rio de Janeiro, o acesso mais confiável era por uma empresa chamada Alternex, que ficava dentro do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) que era uma espécie de ONG do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho.
Essa edição saiu em papel jornal, com 2000 exemplares, em preto e branco. Folheando suas páginas, já dá pra ver menções à internet aqui e ali, mas o exótico mesmo é um anúncio na página 24 de uma empresa chamada Cerberus Digital Jukebox, que perguntava “Grandes gravadoras? Quem precisa?“. Em 1996, um britânico chamado Gary Corben se instalou numa casa em Botafogo e de lá convidava bandas e artistas para detalhar o futuro da música.
Eu fui lá conversar com o Gary, confesso que não entendi lhufas do que ele estava falando. Naquela época, o mp3 tinha acabado de ser inventado, não existia Napster ainda! Mas o anúncio da Cerberus era certeiro. Sabe qual banda ilustrou o anúncio? Acabou La Tequila! Veja.
Para a música, é uma edição grandiosa: 40 páginas, duas entrevistas exclusivas, uma com o Pram e outra com Teenage Fanclub, 11 páginas só de resenhas de discos, além de uma seção inicial de 3 páginas chamada Rockola, com dicas de lançamentos e bandas novas. Tem Idaho, Face to Face, Goya´s Dress, Animals That Swim, Electric Company (projeto paralelo do Brad Laner, do Medicine) Tadpoles, The Bats, Swans, Delicatessen, High Llamas, Slipstream, Sarah Records e muito mais. Curioso notar que várias bandas listadas ali não foram pra frente e é bem difícil achar registro hoje em dia na internê.
Ainda na música, outras listas interessantes são as resenhas de demos e discos independentes nacionais. Na página 4, uma pequena lista das fitas demos lançadas até a época pelo midsummer madness. A lista continua nas páginas 36, 37, 38 e 39, inclusive com anúncio de um novo álbum do brincando de deus. Estão nesta lista Sleepwalkers (que ainda não estava no midsummer madness), Dinky Dau, Beach Lizards, Moonrise, Wry, Weed (que viraria Astromato), Johnsons, Space Rave, ACK, Comespace, Cynics, Mechanics, Snooze, Sex Noise, Divine, Lex Hare, Bughouse, Dago Red…
Nas páginas 38 e 39, uma lista de selos independentes com Cri du Chat, Berlin/RVC, Superdemo, Uptight (gravadora da Low Dream), Self Records (gravadora da brincando de deus), Low Tech Recs, Motor Music, Short, Fora da Lei, AnarcoDemos, Panço Records (embrião da Tamborete Entertainment), além de outros selos que eu nem me lembrava como Pau de Arara Carioca, Força Independente, Sound Riot, Dor de Ouvido…
Todos com endereço para contato. Era assim que funcionava antes da internet.
Surreal também é a quantidade de anúncios nesta edição: 15! Várias lojas de discos, a maioria do Rio de Janeiro e redondezas (quem circulava em busca de CDs nos anos 90, vai se lembrar): Berinjela, Staccato, Planet CDs, Snake Pit; e algumas de outros estados como Óliver Discos (de João Pessoa/PB), O Porão (de Maringá/PR). Alguns anúncios de página inteira como o da gravadora Natasha (anunciando seu grande lançamento nacional, Baba Cósmica), a loja de skate Bone Yard e a Cerberus Digital Jukebox.
Outros anúncios menores da Tinitus (selo do Pena Schmidt, distribuído pela Polygram), brincando de deus, a editora Arte de Ler (que havia lançado seu Almanaque de Fanzines). Alguns anúncios devem ter sido permuta: Freezer (estúdio do Gustavo Seabra e do Dodô, ambos da Pelvs), o festival Expo Alternative 1996, a rádio Brasil 2000 FM (de São Paulo). Tudo isso para viabilizar a distribuição gratuita dos 2000 exemplares.
No editorial, eu assino como único responsável pela edição. Mas a lista de colaboradores é grande. Os que mais ajudaram foram minha irmã, Alessandra e o Dodô. Alê colaborou com a entrevista do Pram, pequenas notas sobre novidades da cena e uma matéria sobre um livro contando a história das mulheres no rock. Em 1996, as meninas que pegaram em guitarras abriram muitas portas para o empoderamento dos dias de hoje.
Dodô escreveu sobre as letras do Morrissey no que deveria ser uma seção sobre literatura e também deu dicas sobre gravação e estúdio, além de resenhas de discos. Marcelo Colares (The Cigarettes) protesta contra a perseguição da crítica musical às bandas que cantam em inglês: “Identidade cultural – isso existe? Se constrói com que você gosta. E só. Para bem e para mal.”
Além deles, Haroldo Mourão escreveu um artigo sobre o trompetista Charles Mingus, realçando seu lado maldito; enquanto Sidney Honigzstein listou xaropes, colírios, anfetaminas e outros medicamentos como alucinógenos, explicando como usá-los e seu barato. Será que isso dá (dava) cadeia? Nunca paramos para pensar.
Também listados no expediente da primeira página, Ulisses Freitas, que ajudou na seção Rockola, Andye Iore, da loja Porão que ajudou com resenhas de discos e demos nacionais, e Marina Boechat, Rafael Genu (Pelvs) e Renata Almeida que escreveram resenhas de discos. A capa foi feita pela Beatriz Lamego (Drivellers, Stellar), com uma foto antiga da Sandra Bréa na praia.
Nas resenhas de discos, mais um monte de amigos: Rodrigo Letier (que viraria sócio da mmrecords no ano seguinte), Larissa Oliveira (que na época era minha namorada e escreveu uma crítica certeira para um EP do Hole), Bruno Montalvão (assinando como Bruno Araca, de Aracaju, como era carinhosamente conhecido) e Marcello Braga. Algumas notas foram divididas pela metade porque, segundo o editor, eram notas muito altas.
As notas mais marcantes?
(da menor para a maior)
Hole – Ask for It (EP) – 1,0
The Amps – The Amps – 1,5
Guided By Voices – Alien Lanes – 1,5 (me orgulho disso até hoje!)
Smashing Pumpkins – Mellon Collie & the Infinite Sadness – 2,0
Medicine – Her Highness – 4,0
Flying Saucer Attack – Distance – 4,0
Blur – The Great Escape – 4,0
Yo La Tengo – Electropura – 4,5 (como assim???)
Neil Young & Pearl Jam – Mirrorball – 4,5
Spiritualized – Pure Phase – 10,0 (que nós consideramos 5,0 – que vergonha!)
Flaming Lips – Clouds Taste Mettalic – 7,0
Sonic Youth – Washing Machine – 7,5
Thurston Moore – Psychic Hearts – 9,0
P.J. Harvey – To Bring You My Love – 9,0
Teenage Fanclub – Grand Prix – 9,0
Bjork – Post – 10,0
Tindersticks – Tindersticks II – 10,0
A seguir, todas as páginas digitalizadas, com suas manchas e erros. Por causa da gráfica barata, algumas páginas finais foram retocadas.
Leia, por favor!
Se você nem tinha nascido em 1996, aproveite para entender como funcionava a troca de informações fora do mainstream, numa época de escassez de fontes. Se você se lembra dessa época, vai se divertir lembrando de várias coisas e ver o registro de bandas, pessoas, discos que, se não fossem os fanzines, estariam desaparecidos para sempre.
(Fizemos uma playlist com algumas bandas citadas para acompanhar sua leitura – ouça aqui (ou abaixo) – curta a página do midsummer madness no facebook para acompanhar as novidades e relíquias, e siga nosso perfil no Spotify para outras playlists)
Obs.: esse não foi literalmente o último midsummer madness em papel. Depois dele, algumas edições menores foram lançadas, a 8.1, 8.2, etc. Mas foi, conceitualmente, o último fanzine da primeira fase. Em breve, teremos fanzines em papel novamente.
Obs2: Vários discos não estão disponíveis para o Spotify no Brasil, como por exemplo, “Grand Prix” do Teenage Fanclub, “Besides” do Sugar e “Tindersticks II” do Tindersticks. E 90% das bandas brasileiras citadas também não estão disponíveis no serviço.
Obs3.: o Felt entrou porque foi a trilha sonora para feitura do zine, está discretamente listado no expediente da 1ª página.