Hoje, mais ou menos na hora em que essa notícia saiu, eu estava em um Uber. O motorista conjecturava sobre a greve de sexta, sobre como a cidade vai ficar, quem efetivamente vai participar. Eu falei sobre o que tinha lido e sobre as minhas expectativas. Ele ponderou, concluiu, questionou. Até ali, o tom era informativo.
Mas, como é inevitável quando se brinca com fogo, não demorou para que ele se empolgasse e subisse o tom. Seguiu-se uma saraivada de comentários pesados sobre as categorias: sindicatos são ladrões “com medo de perder a boquinha do imposto sindical“; professores, “um bando de vagabundos incompetentes que querem apenas uma oportunidade para emendar o feriado“; análises semelhantes se seguiram sobre metroviários, motoristas de ônibus, aeroviários – quando citei estes últimos ele silenciou e ficou surpreso, talvez por imaginar que essa categoria se encontrasse acima das outras.
Arrependido, cortei o assunto. Fui salvo de prosseguir com monossilábicos até o fim por uma ligação de trabalho que felizmente se estendeu até o meu destino. Abri a porta, o tom de sabichão de rede social do motorista deu lugar à cordialidade cúmplice e protocolar do “vou encerrar a viagem; boa noite, senhor Mateus“. Em vez de me irritar com o indivíduo, saí do carro pensando no experimento maior, do qual ele – e todos nós, em alguma medida – fazemos parte.
Desde que o capitalismo industrial surgiu, as classes dominantes promovem as maquinações mais variadas para tentar desmobilizar trabalhadores. Ironicamente, a resistência histórica desses trabalhadores foi fundamental para que o próprio capitalismo abandonasse o arrocho salarial e formas sub-humanas de exploração como estratégia para aumentar o faturamento. A resistência dos trabalhadores foi um dos elementos que forçaram a criação de novos mercados, modelos de negócios, soluções e tecnologias.
A doutrina neoliberal implantada pela dupla Thatcher-Reagan a partir do final dos anos 1970 foi um golpe duro nessa dialética. Ali, mais do que uma política econômica, formulou-se uma engenharia psicossocial, cujo objetivo era dissolver as grandes forças populares – sindicatos, partidos populares, grupos políticos etc. – que se formaram no decorrer do século, colocando em seu lugar uma massa de indivíduos atomizados, orientados apenas para a busca do progresso pessoal. Essa estratégia foi notavelmente bem-sucedida, e a colonização absoluta da internet pela lógica capitalista é a ponta mais agressiva dessa história.
Serviços como o Uber levaram a atomização do trabalhador a um nível radical: sozinho, dentro de um carro, sem qualquer forma de proteção social, quase sem contato humano com outros motoristas e com a empresa para a qual trabalha, o motorista é o produto mais bem-acabado do que se chama de neoliberalismo tardio. O conjunto de opiniões rasas, reativas, hidrofóbicas e levianas que eu ouvi é fruto desse isolamento, fundado justamente na necessidade de se bloquear completamente qualquer senso de coletividade.
Aos que ousam desafiar esse sistema, ou viver sob uma perspectiva de classe (e de sociedade) nos dias de hoje, é reservada a marginalização (como no filme “Eu, Daniel Blake”, do Ken Loach) ou o massacre, seja moral (como no caso das categorias demonizadas pelo motorista) ou físico (ocupações urbanas e rurais, genocídio negro e indígena etc).
O que os capitalistas e os braços políticos que atuam em seu favor relutam em perceber, no entanto, é que isso tem um custo elevadíssimo para o sistema. Uma sociedade de indivíduos isolados, reativos, imbecilizados e egoístas, voltados exclusivamente para a sobrevivência e para formas baratas de hedonismo, não é mais uma sociedade. No mundo todo, a crise da globalização, os índices econômicos decadentes, o colapso dos recursos naturais, as hostilidades militares crescentes, a xenofobia, a violência racial, de gênero e outros fenômenos são sintomas poderosos do futuro reservado a um sistema político e econômico desprovido de sociedade.
texto gentilmente cedido por Mateus Postumati Mariano, que agita coisas muito bacanas na Dabba