No disco de estreia do The Gilbertos, “Os Eurosambas 1992-1998″, a quarta música fala sobre a então ex-prefeita de São Paulo, Luiza Erundina. Ela havia sido a primeira mulher a governar a maior cidade do Brasil, eleita em 1989 pelo PT e completou mandato em 1993. Quando o álbum foi lançado, em 1999, Erundina era deputada federal por SP, já em outro partido, o PSB, e concorreu novamente à prefeitura da cidade, perdendo para a candidata do PT, Martha Suplicy.
Thomas Pappon escreveu a música em 1996, quando vivia em Londres. Erundina havia terminado uma gestão muito criticada pela conservadora classe média paulistana, e havia passado a faixa a seu sucessor e principal inimigo, Paulo Maluf, que assumiu a prefeitura em 1993, desfazendo quase tudo que Erundina havia construído.
Em 2016, no meio de uma das piores crises do país, cercada de políticos conservadores e traidores, Luiza Erundina se candidatou à presidência da Câmara dos Deputados pelo PSOL, para substituir o maior ladrão da história do Congresso, Eduardo Cunha. E mais uma vez, foi traída pela esquerda: o PT, partido que ela ajudou a fundar e pelo qual foi uma das primeiras vereadoras em 1982, não deu apoio à sua candidatura.
Em 2012, quando se alinhou como vice-prefeita na chapa de Fernando Haddad (PT), acabou abandonando a campanha quando o candidato petista recebeu apoio do PP de Paulo Maluf. Em 1998, ela foi a favor do impeachment de FHC; em 2016, contra o impeachment de Dilma; em 2010, ainda no PSB preferiu se ausentar da campanha ao Governo do Estado porque seu partido resolveu apoiar Paulo Skaf… e a lista de coerências é enorme!
Nem sempre no centro das atenções, resolvemos conversar com Thomas para entender os motivos desta antiga “canção de amor para Erundina” para saber se ela ainda tem seu valor. “É uma música sobre a São Paulo das periferias largadas, das margaridas (que limpam as ruas), do pico do Jaraguá. Ela reflete meu profundo pessimismo sobre o trabalho do prefeito, ainda mais alguém como ela, de esquerda, sem glamour e sem apoio. Sempre fui grande fã dela – me parece digna, honesta e corajosa como um personagem de Charles Dickens“, resume Thomas.
Paraibana, nascida em 1934, sua biografia conta que ela repetiu a 5ª série de propósito duas vezes, só para continuar estudando, pois ainda não existia o ensino médio em sua cidade. Mudou-se para São Paulo em 1971, já formada em serviço social. Sua gestão na prefeitura paulistana se pautou por mudanças estruturais na cidade. De longe, Thomas se recorda: “Naquela época não havia internet, não acompanhava as notícias, não sabia de nada de São Paulo. Mas sabia que a gestão dela era focada em melhorias na educação (aumentou salários de professores), saúde pública e habitação popular – e não na construção de túneis ou elevados, o que desagradou a classe média. Governar aquela cidade, na mão de vereadores e administradores regionais corruptos e pouco preocupados com melhorias reais, é muito difícil“.
E Thomas complementa: “Se Lula tivesse seguido o mesmo fervor e princípios, sem fazer concessões ou favores para poder governar, não tinha durado oito anos“. Verdade… uma frase que começa como uma crítica ao ex presidente termina com a dura realidade da atual política nacional, onde o que rege os governantes em todas as esferas é o fisiologismo.
Morando na Europa desde 1992, Thomas acha impossível governar em qualquer instância no Brasil sem concessões: “Tanto que a Erundina teve mil problemas, mas ela priorizou as coisas certas. Acho que depois de garantir o Bolsa Família, o Lula podia ter concentrado em reforma política e fiscal.”
Thomas lembra que “Erundina Song” foi escrita quando ele havia acabado de se mudar para Londres, saindo do isolamento que foram os primeiros anos na Alemanha. “Lá eu vivia quase que isolado do Brasil e de São Paulo…isso mudaria radicalmente em Londres, quando voltei a trabalhar para jornais e revistas. ‘Erundina Song’ é uma das três canções que fiz em Londres (as outras são ‘Amor, Amor, Amor’ e ‘Elefante & Castelo’).”
A gente se lembra que Thomas estava bastante ansioso para o lançamento de “Os Eurosambas 1992-1999″. O disco estava um pouco atrasado por causa da dificuldade de comunicação entre banda (em Londres) e midsummer madness (no Rio de Janeiro); com masterização lenta e a capa, feita por Renato Yada em São Paulo, atrasada. Thomas insistia que o disco precisava ser lançado em 1999, quando a queda do muro de Berlim faria 10 anos. Essa lembrança está inclusive no encarte do disco.
A queda do Muro de Berlim alterara todo cenário geopolítico mundial, e os Eurosambas eram a visão de um brasileiro naquela Europa otimista com o futuro de um sistema vencedor (o capitalismo) mas temerosa das consequências do possível desequilíbrio social (migração, globalização das falências) que o fim do bloco socialista poderia causar. Tudo muito atual, com o aparente pessimismo do BRExit, a desunião das esquerdas e as crises causadas pelas ondas de migração.
Sustentada por uma história política coerente, figura forte e determinada, o que seria de uma hipotética Luiza Erundina como primeira ministra da Grã Bretanha? “Haha… Curiosamente, o perfil dela é um pouco parecido com o do Jeremy Corbyn, lider do partido trabalhista. A posição oficial do partido era contra o Brexit, mas o Corbyn não se empenhou nem um pouco na campanha, por que, como muitos esquerdistas da antiga, deve ver a União Européia como um ‘clube neoliberal’“.
Na letra da música, outras pequenas descobertas que o papo com Thomas revelou:
ERUNDINA SONG
Queria tanto escrever uma canção de amor
pra Erundina
No norte a gente vê as coisas de um jeito
diferenteHumanizar o inferno
é construir dez mil cisternas
a cada diaFazer amor no asfalto
e ver o sol raiar do alto
das montanhasVixe, a cidade afunda
Numa boaQueria tanto fazer uma canção de amor
pra Erundina
Dizer-lhe que o calor da terra seca
e a carne preta da cidade
estão à vendaE aquele sírio-libanês
parar o metrô mais uma vez
ali na esquinaO centro velho virou novo
e o povo todo agradeceu
às margaridas
O sírio-libanês é o desafeto Paulo Maluf, e Thomas explica: “Ele acabou com o que ela fez e retomou as obras voltadas para motoristas e a classe média“.
E o quê são as margaridas? Na verdade é “quem são”, explica Thomas: “Era, e ainda é, o nome dado às mulheres que varrem as ruas, enfim, era como as garis mulheres eram chamadas. É um lindo nome“.
Erundina ainda merece uma canção de amor? “Sim, merece. É de uma coragem inspiradora, uma pioneira, ainda bem que temos ela por perto,” conclui Thomas.