Já é bastante perturbador quando se vê pessoas desumanizando outras pessoas, como está sendo feito com os frequentadores da cracolândia. Como estão acompanhados de um discurso tão meritocrata quanto racista ou socialmente preconceituoso (que fatalmente permeiam a direita) tudo se torna ao menos mais compreensível.
Mas quando você vê médicos fazendo o mesmo, aí o negócio fica mais sinistro.
Além de bater de frente com os preceitos mais básicos de respeito à vida humana e ao indivíduo que norteiam a medicina, é um discurso incompatível com a evidência científica. As maiores e mais sérias sociedades de psiquiatria ou neurologia do mundo questionam fortemente a internação compulsória, evidenciam as origens múltiplas (social, psiquiátrica, genética, etc) do abuso de substâncias e são críticas do modelo antigo (criminalista e belicista) de guerra às drogas (que já provou muitas vezes não funcionar).
O discurso higienista e eugenista, além de essencialmente mau e datado, não se prova cientificamente; o que move a onda de ódio por partes dos colegas contra seres humanos é um pensamento dogmático cuja origem vai da elitização da classe médica (elitização esta que tomou um grande golpe com o sistema de cotas, abertura de novas universidades ou sistemas de financiamento estudantil) até a situação da luta de classes atual, passando pela conivência patética e paternalista dos conselhos federal e estaduais (notórios pela postura retrógrada e pouco científica em questões chave como aborto e uso de canabinóides, por exemplo).
Entendam, amigos médicos: quando você diz que “tem que internar todo mundo à força”, “tem que dar porrada” ou “prender esse bando de vagabundo”, é o equivalente de um leigo na sua área recomendar uma solução ruim pra um problema real.
Você, que gosta tanto de falar mal do balconista de farmácia ou da tia raizeira, está cuspindo na evidência científica, prejudicando (sim, só com o discurso) a condução adequada de um problema não só de saúde, mas social em sua essência.
Entre você e a tia raizeira, eu não tenho dúvidas sobre quem prejudica mais a boa medicina. Nem sobre onde está o lado vil dessa analogia…
por Joe Porto (neurologista pediátrico e guitarrista no Lava Divers)