Não me lembro exatamente quando e como conheci o Go-Betweens, mas nunca me esqueço do cartão de visitas: “Cattle & Cane”. A música fala de um menino voltando à sua terra natal, com o refrão cacófono “the waste memory-wastes” (algo como “resíduos da memória residual”). Devia ser final dos anos 90, e o Go-Betweens anunciava que iria voltar. Eu, que nunca tinha ouvido falar e não imaginava a história quase trágica da primeira fase deles, comecei a escutar disco a disco e a me apaixonar.
(para ler ouvindo esta playlist que fizemos no Soundsgood – basta clicar na setinha em cima da foto)
O Go-Betweens teve uma carreira confusa nos anos 80: a banda assinou 3 contratos seguidos com gravadoras que faliram enquanto viajavam sem parar entre Austrália e Inglaterra, perseguindo o sucesso. Em 1989 eles se separaram pela primeira vez, para voltar a gravar mais de uma década depois, em 2000. Elogiados por R.E.M. e Belle & Sebastian, lançaram três discos ainda mais inspirados, numa discografia com 9 álbuns oficiais pouco conhecida por aqui (em 1999 a Roadrunner local lançou a coletânea “Bellavista Terrace” em CD, uma excelente introdução à banda).
O midsummer madness quase teve uma pequena participação nessa história quando lá pelos idos de 2005, chegamos a conversar com a gravadora LoMax para ser o selo que lançaria “Ocean’s Apart” no Brasil. Menos de um ano depois, um dos fundadores da banda, Grant McLennan, compositor de “Cattle & Cane”, morreu aos 48 anos, vítima de um ataque cardíaco.
O Go-Betweens surgiu em 1977 com dupla Grant McLennan e Robert Forster, colegas do curso de Artes Cênicas (ou “Drama”) na Universidade de Queensland, em Brisbane. Os dois eram fascinados pela ideia de ter uma banda, chegaram a fazer fanzine juntos, tentaram criar um espaço meio Factory (de Nova Iorque) mas perceberam que, para algo acontecer, era melhor envolver apenas os dois. Então, em 1978, influenciados pelo sucesso dos conterrâneos The Saints, que haviam conseguido chegar à Inglaterra com seu single “I’m Stranded”, McLennan e Forster fundaram a própria gravadora, Able Records, e lançaram seu 1º single: “Karen / Lee Remick”. As 500 cópias do compacto viajaram o Mundo e eles quase fecharam contrato com o selo norte americano Bersekley Records, casa de Jonathan Richman e os Modern Lovers.
Mas a distância continental e a falta de dinheiro impediu o contrato. A dupla persistiu e lançou o 2º compacto independente, “People Say / Don’t Let Him Come Back”. Mais uma vez, as poucas cópias mudaram de continente, desta vez chegando às mãos de John Peel e Geoff Travis (da Rough Trade) e também da banda Orange Juice, que os convidou para ir à Glasgow gravar.
No auge do pós-punk britânico, em 1978, o Go-Betweens gravou seu 3º single, “I Need Two Heads / Stop Before You Say It” com ajuda do Orange Juice, lançando pelo selo Postcard, dos escoceses. Em entrevistas concedidas no início dos anos 2000, o Go-Betweens lembrava dessa primeira breve estadia no Reino Unido mais como uma experiência frustrante do que estimulante. Segundo eles, ver como o Orange Juice tinha tudo estruturado – uma banda, um show, uma gravadora deixava a dupla deprimida. Sem dinheiro e sem contrato, voltaram à Austrália em 1980 determinados a melhorar.
Lá, a banda recrutou Lindy Morrison para a bateria e, em 1981, depois de uma turnê com o Birthday Party (de Nick Cave e Mick Harvey) assinou seu primeiro contrato com a gravadora local Missing Link, por onde lançaram o 1º álbum, em 1982: “Send Me a Lullaby”. Originalmente com 8 músicas (3 a mais na fita cassete), essa estreia é um daqueles discos estranhos, sem unidade. Compare “One Thing Can Hold Us” com “Eight Pictures” e você verá uma banda misturando referências pop sessentistas típicas da Class of 86 inglesa, e em outros momentos apontando para influências pós punk de Gang of Four e Raincoats.
Assim que “Send Me a Lullaby” foi lançado na Austrália, Geoff Travis, o chefão da Rough Trade, chamou a banda de volta à Londres, relançando o disco no Reino Unido e colocando a banda em estúdio para gravar seu 2º álbum, “Before Hollywood”, com produção de John Brand (que havia acabado de produzir “High Land Hard Rain” do Aztec Camera).
Forster se recorda: “Era verão na Europa, nós tínhamos 23, 24 anos, e todo mundo adorava nosso primeiro disco. Achávamos que o sucessor teria então que ser o disco de nossas vidas“. A banda passou o verão em Londres compondo numa casa em Ladbroke Grove e na hora de gravar, a Rough Trade os enviou para Eastbourne, um retiro litorâneo para idosos. “Sim, Eastbourne era cinza mas eu gostava, era romântico”, relembrou McLennan em entrevistas.
Eu adorava o glamour decadente da Inglaterra, me lembro de andar pela cidade e melodias surgirem na minha cabeça. (Grant McLennan)
“Before Hollywood” tem 10 músicas, traz pela primeira vez McLennan cantando suas próprias músicas, e dois hits absolutos: “Cattle & Cane” e “That Way”. Nesse disco, um dos melhores dos anos 80, a banda aperfeiçoou o que Big Star e Replacements haviam feito antes e não teve medo de usar órgão analógico no auge da new wave inglesa. Em várias músicas deste disco eles se deixam soar como um trio, dando espaço aos poucos instrumentos, ao invés de querer preencher as músicas com overdubs. Uma comparação pode ser feita com o que o Violent Femmes estava gravando do outro lado do planeta na mesma época.
A primeira música de trabalho foi justamente “Cattle & Cane” e o disco, lançado no Reino Unido em março de 1983, apesar de elogiadíssimo pela crítica, não resultou em vendas. Para piorar, alguns meses depois, a Rough Trade, em sérias dificuldades financeiras, rompeu contrato com a banda.
A decepção comercial não impediu a banda de, quase imediatamente, assinar com o braço inglês da Sire, selo norte americano que abrigava Madonna e Ramones. O Go-Betweens agora era um quarteto, com a entrada do australiano Robert Vickers no baixo, liberando McLennan para dividir guitarras com Forster. O quarteto foi gravar “Spring Hill Fair” na França, com a mesma produção de John Brand. A capa mostra a banda completa, bem vestida num teatro pomposo em Londres.
Mais uma vez, 10 músicas divididas entre os dois compositores, só que desta vez uma vontade absurda de ser pop. Lançado em 1984, “Spring Hill Fair” é um dos discos mais palatáveis da banda, e por isso traz algumas idiossincrasias dos anos new wave, como bateria eletrônica e backing vocals femininos para tentar agradar aos DJs das rádios. É de se imaginar a ansiedade da banda, em busca do sucesso, distante milhas e milhas de sua terra natal, se equilibrando entre promessas de gravadoras e um público que ainda os olhava como imigrantes australianos.
O álbum abre com “Bachelor Kisses” que facilmente seria tema de Molly Ringwald num filme de John Hughes. O disco ainda tem outros clássicos como “Part Company” e “Draining the Pool For You”, com a triste frase no começo “Remembered your name / Evidently, you’ve forgotten mine” (Lembrei seu nome / Evidentemente, você esqueceu o meu).
Algumas semanas depois de lançado, a Sire UK fecha as portas, deixando mais uma vez, em menos de 2 anos, o Go-Betweens sem contrato. A banda volta pra Austrália e, em poucos meses, chega uma proposta da Elektra do Reino Unido para gravarem. A banda volta à Inglaterra onde encontra uma cena musical intermediária mais favorável, com Jasmine Minks, June Brides e a Creation Records nascendo, com Jesus & Mary Chain no seu cast. Forster se recorda por exemplo, de estar presente no 1º show do Jesus & Mary Chain em Londres com os escoceses estavam abrindo para o June Brides.
A banda entra em estúdio para gravar seu 4º disco, “Liberty Belle & The Black Diamond Express” quando a Elektra – sério isso – anuncia que vai fechar seu escritório no Reino Unido. A banda consegue ficar com as masters. O álbum sai em março de 1986 pela Beggars Banquet, e apesar de clássicos como “Spring Rain”, “The Wrong Road” e “The Head Full of Steam”, o Go-Betweens era uma banda sem forças. “A Elektra nos deu dinheiro para gravar o disco e acabou“, relembra Forster, “eles nem queriam saber, nos deram dinheiro de graça! Mas mesmo assim, isso (outra gravadora fechar) nos afetou profundamente. Sabíamos que para ter uma carreira sólida, como REM ou U2, precisávamos ter todos nossos discos no mesmo catálogo de uma única gravadora“.
Um ano depois, em 1987, pela primeira vez na mesma gravadora, a banda grava seu 5º álbum, “Tallulah“. Para produzir o disco, a Beggars Banquet contratou Craig Leon, que havia transformado os Ramones em sucesso comercial e produzido primeiro álbum da Blondie, só que o dinheiro só foi suficiente para trabalhar em duas músicas: “Cut it Out” e “Right Here”. Curiosamente, são as piores músicas da banda, com todos os defeitos pop dos anos 80 e a cara daquele surf-rock australiano ruim. As outras 8 músicas foram gravadas num estúdio barato em Camden com produção da própria banda e soam muito mais como o GB que conhecemos.
Em depoimentos da época, Forster e McLennan se sentiam amaldiçoados, diziam abertamente que, mesmo que eles produzissem a melhor música do mundo, nada aconteceria na carreira do Go-Betweens. O que vemos nestes dois álbuns é uma banda obcecada pelo sucesso a qualquer custo, deixando produtores moldarem suas músicas para o gosto radiofônico da época. Não deu certo, e “Tallulah” é um dos únicos discos da carreira da banda que pode ser ignorado.
A banda voltou mais uma vez para Austrália para gravar seu 6º álbum, “16 Lovers Lane“, lançado em 1988, pela Beggars Banquet, com produção de Mark Wallis (Bauhaus, Killing Joke e “Joshua Tree” do U2). O baixista Vickers havia deixado a banda, em seu lugar entraram John Willsteed e também a violonista e vocalista Amanda Brown, com quem McLennan tinha um relacionamento na época. O fato de terem buscado o produtor de “Joshua Tree” do U2 não era coincidência. “16 Lovers Lane” traz de volta bons momentos da banda como as clássicas “Streets of Your Town” e “Was There Anything I Could Do?”. A banda ainda se esforçou para que o sucesso viesse: montou uma turnê que durou 11 meses, terminando num show em junho de 1989, em Munique, quando a banda decidiu se separar pela 1ª vez.
(Abaixo um vídeo de 1987 da banda ao vivo na Alemanha)
Com o fim da banda, McLennan e Forster lançaram carreiras solo pouco inspiradas, até que em 1999, depois de alguns shows de reunião, decidiram gravar juntos novamente, em Portland, com ajuda das meninas do Sleater Kinney e todo apoio da gravadora local Kill Rock Stars. “Friends of Rachel Worth” surpreende pela capacidade da dupla que estava sem compor junto há 12 anos. Além de belas músicas como “Magic in Here”, Surfing Magazines” , o disco vale principalmente por “The Clock”, uma música tão ou mais inspirada do que “Cattle & Cane”.
O disco não foi tão bem recebido no começo dos anos 2000, quando a maioria da imprensa musical o achou reminescente de “new wave” dos anos 80. Foi nessa época que conheci a banda e me lembro de perceber uma finesse à la Lloyd Cole e Yo La Tengo, com a irresistível levada do bom surf rock australiano. O Go-Betweens era australiano sabe? Praia, calor, sol, semelhante ao Rio de Janeiro.
Uma das músicas deste disco dizia “we used to get our kicks reading surfing magazines” (nós ficávamos animados lendo revistas de surfe) e mais adiante “we used to wet our fingers reading surfing magazines” (nós ficávamos de dedos melados lendo revistas de surfe). Como não se apaixonar?
Outra letra, de “When She Sang About Angels”, uma homenagem à Patti Smith, não deixava de trazer uma crítica ousada: “when she sang about a boy / Kurt Cobain/I thought what a shame it wasn’t about /Tom Verlaine” (quando ela cantou sobre um rapaz / Kurt Cobain / Eu pensei ‘que vergonha que não é sobre’ / Tom Verlaine). Como não se apaixonar (2)?
Alguns anos depois, saiu o 8º disco, o segundo desde a volta da banda: “Bright Yellow, Bright Orange“, e mais hits: “Caroline and I”, “Poison in the Walls”, “Mrs Morgan”, “Old Mexico”… o disco inteiro é perfeito, era impossível imaginar o Go-Betweens gravando qualquer coisa ruim. E quase final do disco, na música “Something for Myself”, a frase:
Trapped within an image unable to move Want to get out of Folk and get into Rare Groove Want to go to Brazil and see how the people move, in that town(Preso numa imagem / sem poder mudar / quero sair do folk / e cair nos grooves raros / quero ir pro Brasil / e ver como as pessoas se movem, naquela cidade)
Então foi nessa época que contactamos a gravadora deles na tentativa de lançar a banda no Brasil. Desde “Friends of Rachel Worth” que Forster e McLennan dividiam as composições nos álbuns, e lá estavam os dois, juntos mais uma vez, produzindo hits ainda melhores que os dos anos 80. A diferença é que estávamos nos anos 2000, com internet, Franz Ferdinand, Killers e Coldplay. Quem se importaria com uma banda nascida no colo de Velvet Undeground, Bob Dylan e Television?
Mais uma vez produzido por Mark Wallis (de “16 Lovers Lane”) a revista Mojo de 2005 deu cinco estrelas para o disco, certificando-o como um clássico instantâneo. A Uncut deu 4 de 5 estrelas, e completou dizendo que a reunião de McLennan e Forster só melhorava.
Depois de muito esperar uma resposta para nosso contato, finalmente chegou um pacote com quase todos CDs da banda (felicidade máxima) e uma proposta da banda para lançar “Oceans Apart“. Que título apropriado! Mas o valor, em euros. Antes que pudéssemos responder, Grant McLennan faleceu. Os emails cessaram.
Quase 10 anos depois da morte de McLennan, com Go-Betweens guardado na estante das bandinhas favoritas do coração, mesmo sem acompanhar a carreira solo de Robert Forster, passo a conhecer Goon Sax, banda de Louis, filho de Robert. E lá está a voz do pai e o jeito de tocar violão. O Go-Betweens volta à cabeça.
Esperamos que ao ouvir essa playlist, você perceba que o Go-Betweens tem um pouco do que você sempre amou no Lloyd Cole, tem o apuro melódico do Velvet Underground, o pop sem medo do REM, o cuidado com as guitarras do Felt e Smiths, o surf rock australiano de boa qualidade de INXS, Triffids e Hoodoo Gurus.
A genialidade da dupla McLennan e Forster eleva o Go-Betweens ao patamar de Morrissey-Marr, mas a banda australiana nunca teve seu talento reconhecido. A história trágica dos anos 80 e a redenção nos anos 2000, até a morte de McLennan. Saiba porque você precisa ouvir Go-Betweens