É difícil quando pessoas que a gente admira passam deste plano para outro.
Ontem foi atípico, como se um tornado invisível tivesse abalroado esses conhecidos mais sensíveis ao desgoverno do mundo. Alguns estavam aqui na nossa frente, de carne e osso. Outros, na nossa frente via ondas eletromagnéticas. Todos expostos, expressando seus pensamentos e sentimentos. E nós, desatentos, na maioria das vezes, apenas consumindo.
Ontem também, por acaso, eu estava assistindo um documentário sobre a grande seca das planícies norte americanas nos anos 30, conhecida pelos enormes Dust Bowls que formava. Um relato rápido dentro do 2º episódio me deixou intrigado, especialmente ontem.
Boise City ficava no centro geográfico da seca e das tempestades de poeira. A cidade havia sido o epicentro de uma campanha para exploração da agricultura na região a partir da 2ª metade dos anos 1920. Depois de alguns anos de sucesso, a chuva parou de vir em 1931. Nos primeiros anos, a pessoas achavam que a seca iria passar. Durou 10 anos.
Em 1934, incessantes e cada vez mais violentas tempestades de poeira fizeram negócios falir, famílias perderem suas terras, crianças morrerem com doenças respiratórias. Alguns se suicidaram na falta de esperança pela bonanza que nunca voltava.
Um dos negócios que iria fechar as portas era o cinema Palace Theatre, no centro de Boise. Quando foi anunciado o fechamento, a população se mobilizou para que continuasse aberto. O cinema era a única fonte de desafogo para a miséria, desesperança e o sofrimento das pessoas; uma válvula de escape, um ponto de encontro e de apoio mútuo.
O que me intrigou foi: porquê as pessoas só se deram conta da importância do cinema quando ele estava prestes a fechar?
O Dust Bowl foi o resultado de exploração desenfreada da terra, da ganância acima do senso de comunidade, sem se preocupar com os efeitos no ecossistema, sem se preocupar com tudo ao seu redor. Foi fruto do pensamento que só a economia, a bonanza, nos governa; que os meios de produção são como deuses a serem reverenciados. Esse mesmo pensamento já estava afundando a economia norte-americana na Grande Depressão de 1929. Esse mesmo pensamento governa o mundo ultimamente, onde artistas são vagabundos, aquecimento global é fake news, a terra é plana e o agronegócio, a bala e escola sem partido alienam pessoas.
Nossos conhecidos que se foram ontem – André Sakr, Luke Perry, Keith Flint – se juntam a outros que faleceram recentemente, como o fanzineiro, designer e guitarrista da Pale Sunday, Sineval Almeida; e o jornalista Paulo Cavalcanti. Esses conhecidos eram o cinema para onde a gente ia. Agora eles fecharam.
Em alguns casos, talvez a gente pudesse ter se mobilizado. Em outros, não. De qualquer forma, me pergunto se frequentamos o cinema com a devida frequência. Ou, em que momento deixamos de nos preocupar com coisas tão fundamentais como a presença do outro, o que ele tem para falar; e passamos a nos preocupar apenas em arar nosso quintal, pouco se importando com a tempestade que estamos formando no horizonte.
Uma coisa mais: a partida dos que estavam mais próximos me deixam mais triste. Não pretendo comparar; todos vão fazer falta. Mas André, Paulo e Sineval estavam aqui do nosso lado, produziram zines, textos, desenhos, músicas, festas e momentos de alegria.
Eu queria ver mais postagens, mais artigos sobre quem eram estes gênios desconhecidos. Digo isso porquê boa parte de nós, você que está aí lendo, também já foi ou ainda é esse cinema de Boise City. E quando essa nuvem negra vai se aproximando, você se pergunta aonde estão as mãos, os sorrisos, os encontros que te fazem forte?