Em abril de 2017, falar da crise hídrica em São Paulo parece atrasado. Mas não é. O problema da água em São Paulo não acabou e serve para mostrar como continuamos a usar mal os recursos naturais no Brasil e a tragédia que virou a política brasileira nas últimas décadas.
Agora que a crise parece ter passado, conversamos com Caio Ferraz e Ana Rosa Colhado, responsáveis pelo excelente Volume Vivo, um projeto independente de produção de conteúdo e curadoria de notícias sobre questões da água. Um dos primeiros conteúdos foi uma websérie com três episódios que mapeou as causas e propõe possíveis soluções da crise de água no estado de São Paulo.
Durante o acirramento da crise de abastecimento de água na Grande São Paulo, ainda em 2014, Caio teve a ideia de produzir a websérie via crowdfunding para tentar informar melhor a população. Caio já havia produzido e dirigido o excelente “Entre Rios“, em 2011. O mini-documentário, também disponível na íntegra na internet, fala como o processo de urbanização da cidade de São Paulo sempre tratou mal os recursos da cidade. Com uma abordagem histórica e ótima pesquisa, Caio conseguiu explicar, quase 4 anos antes, porque a maior metrópole da América do Sul sofre tanto com a água.
“Entre Rios” mostra a surpreendente transformação sofrida pelos rios paulistanos e “as motivações sociais, políticas e econômicas que orientaram a cidade a se moldar como se eles não existissem“, como definiu Caio. Se você já passou pelas avenidas marginais de São Paulo (marginal Tietê e marginal Pinheiros), vai se surpreender ao saber como eram tortuosos, limpos e equilibrados os rios que rodeavam a capital paulistana. (Mais informações aqui)
O mais impressionante de todo este processo é descobrir que os rios foram “retificados” (tiveram seus tortuosos cursos alterados para canais retos) para facilitar a exploração imobiliária de seu entorno e produzir energia elétrica, com seu fluxo reorientado para o litoral (quando na verdade as águas corriam no sentido oposto). Tudo isso aconteceu numa época onde grandes obras eram vistas como progresso natural da humanidade, sem qualquer preocupação com as consequências naturais que viriam a seguir.
E elas chegaram. Entre 2014 e 2016, uma das maiores secas do século levou ao limite um sistema montado para o uso desenfreado de água, impulsionado por interesses comerciais de sua gestora, a SABESP. Em 2014, ano de eleições estaduais, o Governo Alckmin, que concorria à reeleição, escondeu a gravidade da crise e ajudou a manter a falsa ilusão do paulistano de que a crise era passageira. Não é.
Somente após vencer as eleições estaduais, o governador tucano admitiu a crise. Mas isso está longe, muito longe, de parecer uma postura de maturidade. Por mais de um século, a água é usada de forma indiscriminada em São Paulo (e no Brasil) e por mais de duas décadas, os governos do PSDB vêm fazendo obras para manter o abastecimento de água e o saneamento da região metropolitana como se o recurso fosse infinito. Pior, o estado de São Paulo e sua capital abusam do poderio econômico para roubar água de estados vizinhos e a região metropolitana não se importa de secar recursos de outros municípios em seu entorno.
E o paulistano segue feliz, lavando suas calçadas.
No meio de tamanha cegueira, Caio resolveu agir. “No primeiro semestre de 2014, relembra Caio, “participei de um seminário sobre a crise hídrica em SP, organizado pelo Le Monde Diplomatique. Na ocasião, fiquei com um sentimento de que o assunto estava sendo tratado de forma superficial. Como o tema da agua já era parte da minha pesquisa há uns bons anos, decidi investir meus esforços na produção de uma websérie sobre a falta de água na Grande SP. O objetivo era informar a população sobre as reais causas da crise e, por isto, era essencial que a obra fosse disponibilizada online gratuitamente para alcançar o maior público possível“.
Sabendo que a pesquisa seria longa, que haveria necessidade de gravações fora da capital e até mesmo, da necessidade de um esquema para gravações em cima hora, Caio optou pelo crowdfunding para realizar o projeto.
O primeiro episódio, intitulado “A negação da crise” (com 17 minutos) foi lançado em abril de 2015.
Na época, a principal fonte de abastecimento de água da capital paulista estava em seu 2º volume morto e o racionamento era realidade há mais de um ano nas regiões mais pobres da metrópole. Este episódio mostra como Alckmin manipulou informações com fins eleitoreiros (que o reelegeram em 2014) , ordenando à SABESP a negar o problema. Enquanto isso, diariamente, o noticiário bombardeava a população com a necessidade de se economizar água enquanto contratos de demanda firme, aqueles feitos com grandes empresas onde quanto maior o consumo, maior o desconto, eram mantidos.
Com o primeiro episódio lançado, Caio ganhou o apoio de Ana, que já participava desde o crowdfunding e começou a se envolver mais diretamente com o projeto. “O Caio adora pesquisar mapas e a parte mais técnica, sobre como funciona o abastecimento e tratamento da água. Eu foco mais nas questões de direitos humanos e ambientais. O tema da água é muito mais abrangente do que imaginamos e há muita coisa, no sentido de políticas públicas, que não são transparentes o que exige uma vasta investigação”.
Com mais gente no projeto, Caio afirma que entrevistou aproximadamente 50 pessoas, todos especialistas há muito tempo envolvidos com as questões da escassez hídrica na Grande SP e que eram pouco ouvidos. Nem a SABESP, nem o Governo de SP falaram oficialmente com o Volume Vivo. “No início, tentamos diversas vezes contato com a Sabesp, que nunca respondeu. Escolhemos não dar voz a eles pois a opinião deles já era amplamente veiculada na grande mídia“.
O segundo episódio, “A Água de Dentro” (29 minutos) ficou pronto em setembro de 2015, quando o paulistano começou a ter a impressão de que “o pior tinha passado”.
Neste episódio, especialistas explicam que é necessário mudar o jeito de usar a água. Ao invés de fazer obras para “roubar” água de municípios e estados vizinhos, de poluir a água que já dispõe ao não sanear corretamente o esgoto da cidade e de não administrar racionalmente a água das chuvas, São Paulo só está adiando novamente a crise. Neste episódio você descobre que a cidade de São Paulo não trata seu esgoto, apenas o coleta; que o índice de perda da água que é distribuída é de 39% (em vazamentos e roubo) e que cavar poços artesianos não é uma solução adequada à longo prazo.
Caio reforça: “Recentemente, o portal de notícias Fique Sabendo, perguntou à Sabesp, por meio da Lei de Acesso à Informação, qual era a quantidade de esgoto que a empresa jogava nos rios e a resposta deles foi que eles não medem o esgoto que não é encaminhado para tratamento e que, portanto, não saberiam informar. Ou seja, a Sabesp continua seguindo a lógica de que não nos deve satisfação sobre os serviços que presta”.
“Apesar de existir tecnologia para tratar essa água, não há interesse. Para essas empresas é mais rentável trazer água de longe, vendê-la, gerar e taxar o esgoto, ao invés de tratá-lo”
O terceiro e por enquanto último episódio, intitulado “De Onde Vêm a Água” (25 minutos) saiu em setembro de 2016.
Aqui, com o assunto já arquivado como “problema do passado” no inconsciente da maioria dos paulistanos, Caio e sua equipe reexplicam o que aprendemos na escola, que a natureza aperfeiçoou técnicas por bilhões de anos, todas elas baseadas em cooperação e não competição. O título tão básico, “De Onde Vem a Água”, reforça o teor escolar deste episódio, e nos lembra que, a se manter o atual paradigma, a natureza vai começar a cobrar pelo desequilíbrio.
Nos anos 80 e 90, qualquer punk que estivesse produzindo um fanzine teria esse assunto como destaque. Mas é impressionante o descaso que as pessoas tratam este e outros assuntos em São Paulo e no Brasil. Todos vivem como se algumas coisas do nosso dia-a-dia fossem mágicas: a água brota da torneira, o lixo some miraculosamente ao entrar na lixeira, todos amam os carros que andam cada vez mais rápido nas marginais, tomando o lugar de pessoas… E ninguém parece se incomodar.
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o governo federal anunciou um programa de concessões à iniciativa privada que deve incluir a CEDAE, Companhia Estadual de Águas e Esgoto do Rio de Janeiro, criada nos anos 70. Segundo Caio, o rumo traçado pelos governantes “ilustra este quadro de mercantilização de um direito humano, que é o acesso a água limpa e segura, assim como ao saneamento básico reconhecido, desde 2010, pela Nações Unidas como direito fundamental“. E complementa: “É evidente que existem grandes interesses econômicos por trás dessa articulação, mas eu não saberia dizer ao certo quem são os interessados. Por isso a produção de conteúdo sobre a privatização da água é mais relevante do que nunca“.
Ana acha que a crise que aconteceu em São Paulo “é uma oportunidade para repensarmos os modelos de sociedade, de participação política e de consumo. Acreditamos que a websérie possa auxiliar nesta tomada de consciência da sociedade em todos os municípios brasileiros afetados pela má gestão dos recursos hídricos. Infelizmente muitos de nós ainda estão à mercê das informações pontuais e desconexas da grande mídia“. Ana e Caio já pensam numa nova campanha de financiamento coletivo ainda este ano.
Se você chegou até aqui neste texto, assistiu aos episódios, pense bem: não são belos motivos para se lutar?
Participe, informe-se:
www.facebook.com/volumevivo/
twitter.com/volumevivo